É impossível separar o espiritual do material. Simplesmente porque mente e corpo são exactamente a mesma coisa. É no cérebro que ocorrem as sinapses; dêndritos (responsáveis pela recepção) e axónios (responsáveis pela transmissão) comunicam através de mensagens eléctricas e químicas. Em nós (ou naquilo que identificamos como sendo a nossa identidade) formam-se pensamentos, sensações e sentimentos. Estes, por sua vez, devolvem ao corpo (seja de maneira consciente ou automática) a sua força, sob a forma de movimentos, acções, secreções, contracções, etc.
Não é, por isso, de estranhar que as memórias tenham também o seu lado corpóreo. Se um cheiro nos conduz de imediato à infância, ou uma melodia ao conforto dos avós que nos criaram, temos os sentidos como activadores da mente. Mas o inverso, a mente como activadora dos sentidos, não é menos frequente. É esse o caso de, por exemplo, quando revivemos em pensamento o momento em que descobrimos uma traição.
(Pode aqui questionar-se a utilidade desse tipo de pensamento masoquista, mas quantas coisas inúteis fazemos na nossa vida??? E quem nunca tenha ido por esses tortuosos caminhos que atire a primeira pedra.)
Voltando ao raciocínio anterior: pensando numa traição, em sentir debaixo do nosso corpo, no colchão, as marcas ainda frescas da duplicidade; o nosso corpo resgata as sensações desse exacto instante: a mesma náusea, a mesma arritmia, a mesma desilusão, a mesma tristeza, a mesma raiva. E, por um momento, tudo isso é real. Aparentemente. Porque o corpo pode ser tão mentiroso como a mente.
Sair desse filme é tão simples como refocar a câmara. Interpretar um papel afinal não é mais do que reviver experiências ou sensações semelhantes às inscritas num guião, e grande parte da nossa vida passamo-la a fazer papéis. Os do passado, agarrados ao que já não é, e os do futuro, presos ao que gostaríamos que fosse. Em ambos, há uma clara preferência para o martírio e a auto-comiseração. E começo a pensar que isso é simplesmente uma decisão de marketing: “vende” mais. Capitalizamos mais em pena que em admiração. Especialmente porque o investimento no primeiro é bastante mais baixo que no segundo.
Admiro-o porque ele age, porque ele investe, porque ele decide, em direcção a mim. Admiro-me a mim mesma, por agir, por investir, por decidir, em direcção a ele. Todos os dias. E todos os dias fecho à chave mais um demónio.
THE DANCER
PJ Harvey
(...)
He said dance for me, fanciulla gentile
He said laugh a while, I can make your heart feel
He said fly with me, touch the face of the true God
And then cry with joy at the depth of my love
'Cause I've prayed days, I've prayed nights
For the lord just to send me home some sign
I've looked long, I've looked far
To bring peace to my black and empty heart
(...)